A cidade de Aveiro, situada na margem de uma vasta ria, exala um charme europeu sereno, quase onírico. É conhecida como a “Veneza de Portugal”, um título conquistado pelos canais que rasgam o seu coração histórico, navegados pelos barcos moliceiros de proa elevada e cores garridas que deslizam sob pontes pitorescas. As suas ruas são um museu vivo de elegância Arte Nova, onde fachadas de azulejos intricados e varandas ornamentadas de ferro forjado falam de um passado próspero e requintado. É uma cidade de praças soalheiras e doces de receita secreta, um lugar que encontrou uma harmonia confortável entre a sua história e um presente vibrante de cidade universitária.
A este cenário plácido chegou um convidado inquietante. Este verão, uma exposição de arte internacional erguerá uma versão contemporânea de um antigo tzompantli asteca — um altar de crânios. O tzompantli histórico era um monumento de poder aterrador, uma estrutura pública onde os crânios de guerreiros e cativos sacrificados eram exibidos como testemunho do poder imperial e tributo aos deuses. É um símbolo saturado pela memória da violência ritual, da conquista e de uma visão do mundo profundamente alheia aos canais tranquilos da costa portuguesa.
Esta colisão cultural marcante está no cerne da TZOMPANTLI – Exposição Coletiva Internacional, um evento que promete ser um dos mais estimulantes intelectualmente e cativantes visualmente do ano. Mas o verdadeiro enigma, o detalhe que eleva esta exposição de uma justaposição curiosa a um paradoxo cultural profundo, é o seu local. Esta meditação sobre os rituais de morte mesoamericanos decorrerá dentro das paredes do Instituto Confúcio local, um órgão oficial de promoção cultural chinesa, afiliado ao Estado, sediado na Universidade de Aveiro.
O arranjo cria um diálogo triangular surpreendente entre a história latino-americana, a arte contemporânea europeia e a diplomacia cultural chinesa. No centro desta convergência está Ellaya Yefymova, uma refugiada ucraniana e médica que se tornou artista, cuja obra, forjada no cadinho da guerra, confere ao tema antigo da exposição uma urgência aterradora e moderna.
O seu percurso desde uma cave em Kiev até uma galeria em Aveiro transforma a exposição de uma investigação filosófica numa mostra visceral. Esta exposição é muito mais do que uma coleção de obras de arte; é um microcosmo da globalização do século XXI, onde símbolos antigos, traumas contemporâneos e “soft power” geopolítico colidem para criar significados novos, desafiadores e profundamente urgentes.
Ellaya Yefymova: De uma Cave em Kiev
Para uma das contribuintes mais fascinantes da exposição, o tema da mortalidade não é uma curiosidade histórica e distante. É uma realidade vivida. O percurso de Ellaya Yefymova até à galeria em Aveiro começou numa cave em Kiev, com os sons da invasão russa a ecoar lá fora, enquanto lidava com um terror tão profundo que iria remodelar fundamentalmente a sua vida e a sua arte.
Nascida em Zaporizhzhia, Ucrânia, em 1990, o caminho de Yefymova para se tornar artista foi tudo menos direto. Formou-se na escola de artes com distinção mas, impulsionada por um amor paralelo pelas ciências naturais, tirou um curso de medicina e, durante anos, viveu uma vida dedicada à ciência. O sonho de ser artista, no entanto, nunca se desvaneceu.
O confinamento global em 2020, seguido pelo nascimento do seu filho, tornou-se um catalisador. “Ser mãe fez-me perceber que os sonhos não podem ser adiados!”, escreve ela. “Não há melhor altura do que agora!”. Começou a sua carreira artística a sério, com a sua formação médica a infundir na sua obra uma precisão clínica e um foco no corpo humano.
Mas foi a invasão russa em 2022 que se tornou a força definidora da sua evolução artística. A experiência de fugir de casa, de confrontar a possibilidade de aniquilação, despiu-a de qualquer artifício restante. Agora refugiada a viver em Lisboa, a sua obra voltou-se para o que ela chama de “arte sombria,” uma exploração direta e sem rodeios da mortalidade. O seu percurso é uma ironia profunda e trágica: uma médica formada para preservar o corpo, agora compelida pela guerra a representar o crânio — o próprio ícone da sua ruína. A sua precisão clínica, outrora uma ferramenta de cura, é agora uma ferramenta de observação.
A sua filosofia artística é uma declaração de sobrevivência. “Agora, depois de ter passado pela depressão causada pela necessidade de fugir da guerra, investigo o tema da mortalidade e da perceção da morte como uma grande motivação para viver esta vida conscientemente”, afirma. O seu objetivo é “transformar o meu medo e desespero vividos no início da guerra em arte”. Ela acredita que o medo da morte é “paralisante” e, em vez de recorrer à religião, procura transformar esse medo “numa motivação para viver”.

As suas pinturas para a exposição são a personificação crua desta filosofia. A imagem promocional do evento apresenta uma das suas obras, ‘The Last Trade’: um crânio humano, representado com a precisão de uma anatomista, destacando-se contra um fundo escuro. É desprovido de sentimentalismo. Não romantiza a morte, nem a sensacionaliza. É um confronto direto, sem pestanejar, de uma mulher que “olhou para o abismo”. Este é um memento mori moderno e politicamente carregado.
“Acredito firmemente que é tempo de a humanidade deixar de desperdiçar vidas e recursos em guerras e, em vez disso, direcioná-los para a evolução tecnológica, emocional e pessoal, para finalmente nos tornarmos uma versão melhor de nós mesmos – o humano 2.0”, disse ela. A sua arte não é apenas uma meditação sobre o facto universal da morte, mas uma acusação específica às forças políticas que a aceleram. É uma lição de anatomia pós-traumática, a diagnosticar um mundo doente.
Um Altar de Arte, Não de Conquista
Compreender a exposição é, primeiro, sentir o peso do seu símbolo central. O tzompantli histórico não era um conceito abstrato. Era uma realidade visceral, uma estrutura monumental de madeira e osso que se erguia nos corações cerimoniais de cidades mesoamericanas como a capital asteca, Tenochtitlan.
Relatos dos conquistadores espanhóis e ilustrações em códices pós-conquista descrevem fileiras e fileiras de crânios, perfurados nas têmporas e enfiados em postes horizontais — um registo público de sacrifício e poder militar. Eram, muitas vezes, as cabeças de prisioneiros de guerra, e a sua exibição era parte integrante de rituais complexos ligados aos ciclos da vida, da morte e da manutenção da ordem cósmica. O tzompantli era uma exibição crua tanto de poder imperial como de crença espiritual, um monumento público de imenso poder político e religioso.
Transformar este legado é a missão declarada do coletivo Art Spectrum, o grupo específico de artistas internacionais, baseado em projetos, que impulsiona esta série de exposições. A exposição é explicitamente “Inspirada na antiga tradição asteca do tzompantli”, mas o seu objetivo é fomentar uma “reflexão contemporânea sobre a memória, a identidade e a impermanência” da vida.
Os organizadores descrevem o projeto como uma “cerimónia visual que convoca o pensamento e o espanto”, esclarecendo que o seu altar moderno não é construído de osso, mas de “obra viva”. Este ato de reinterpretação é o gesto fundador do projeto, uma tentativa de dissociar o símbolo das suas origens literais e violentas e reaproveitá-lo como catalisador para uma investigação filosófica mais universal.
No entanto, o projeto resiste a uma higienização completa do seu tema. Embora o coletivo vise uma meditação global sobre a mortalidade, o trabalho dos seus artistas mexicanos garante que a exposição permaneça ancorada nas suas origens complexas, muitas vezes dolorosas e politicamente carregadas. Isto impede que o crânio se torne apenas mais um memento mori genérico.
Para a exposição inaugural na Cidade do México, a artista Olinka Domínguez contribuiu com uma pintura intitulada ‘Herencia de una conquista’ (“Herança de uma Conquista”), que representava um crânio adornado com elementos que remetiam para a invasão espanhola, um comentário direto sobre a imposição violenta de uma cultura sobre outra. A sua obra ligava o ritual pré-hispânico ao clima atual de violência que assola partes do México, demonstrando que o tzompantli não é uma relíquia de um passado distante, mas um símbolo vivo, cujos ecos ressoam no trauma histórico do colonialismo e nas feridas abertas do presente.
Aqui reside a negociação delicada no cerne do projeto: a tensão entre a sua ambição universalizante — criar um espaço para uma audiência global contemplar a mortalidade — e a história específica e politicamente carregada do seu motivo central. A exposição parece perguntar: pode o tzompantli ser simultaneamente um símbolo universal de impermanência, como uma pintura vanitas holandesa, e um emblema inescapavelmente político da história mesoamericana e da luta pós-colonial?
O poder do projeto reside na sua insistência em que pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, criando um diálogo mais rico e desafiador que recusa respostas fáceis. Aproveita o reconhecimento global do crânio enquanto força um confronto com uma história específica e não-europeia de violência, criando um diálogo mais complexo e desconfortável do que uma simples meditação sobre a morte. Torna-se uma meditação sobre a morte de quem, e às mãos de quem.
Uma Sessão Global Sobre o Inevitável
A exposição em Aveiro funciona como uma espécie de sessão global, onde diversas experiências culturais da mortalidade convergem e dialogam entre si. A força curatorial do projeto emerge de um diálogo poderoso entre três vozes artísticas distintas: Ellaya Yefymova, Olinka Domínguez e Francesca Dalla Benetta. As suas vozes demonstram a capacidade da exposição de usar um único e potente símbolo como um prisma através do qual uma multitude de experiências humanas com a vida e a morte pode ser refratada.
O primeiro polo desta conversa é o político, ancorado na obra de Olinka Domínguez. Como referido anteriormente, a sua arte ancora a exposição no solo histórico específico do México, confrontando o trauma do colonialismo no espetro da violência contemporânea. A sua obra garante que o crânio permaneça um emblema de uma luta política específica, um lembrete de dívidas históricas e injustiças atuais.
O segundo polo é o existencial, personificado por Ellaya Yefymova. As suas pinturas hiper-realistas ligam a exposição à longa tradição europeia do memento mori, o crânio como um lembrete universal da transitoriedade da vida. No entanto, a sua biografia infunde esta tradição com uma pungência profunda e imediata. Para Yefymova, o crânio não é um estímulo filosófico abstrato, mas um símbolo forjado no cadinho do trauma pessoal e do conflito geopolítico, falando de um existencialismo aguçado pela ameaça imediata de aniquilação.

A atuar como ponte cultural entre estes dois mundos está Francesca Dalla Benetta, uma escultora italiana radicada no México há muitos anos. A sua obra introduz um terceiro polo: o metafísico. Para a exposição na Cidade do México, a sua escultura em baixo-relevo, ‘Hasta que la muerte nos separe’ (“Até que a morte nos separe”), apresentava um crânio de resina do qual emergiam flores tridimensionais.
Inspirada pela ideia da morte como um “portal para outras realidades”, a sua abordagem surrealista move-se para além do político ou do puramente filosófico, para o reino do espiritual. Esta perspetiva ressoa com as tradições celebratórias e de afirmação da vida do “Día de los Muertos” mexicano, onde os crânios são adornados com cores vivas e flores para honrar, e não chorar, os falecidos.
Quando colocadas juntas, estas três perspetivas criam um diálogo rico e desafiador. Domínguez pergunta: “Qual é a história desta violência?”. Yefymova pergunta: “Como vivemos perante esta violência, aqui e agora?”. Dalla Benetta pergunta: “O que vem depois desta violência?”.
A exposição não fornece uma única resposta, mas mantém estas três questões vitais numa tensão poderosa e por resolver. A raiva política de Domínguez impede que o espiritualismo de Dalla Benetta se torne escapista. O sentido de transcendência de Dalla Benetta impede que o trauma cru de Yefymova se torne niilista. E a realidade imediata e visceral de Yefymova impede que a crítica histórica de Domínguez pareça puramente académica. Elas moderam-se e enriquecem-se mutuamente, revelando uma estratégia curatorial altamente sofisticada.
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O Dragão e o Crânio
A importância da exposição ‘Tzompantli’ reside não apenas na sua arte, mas também na sua arquitetura organizacional. O projeto é o produto de um triunvirato único e sofisticado: um coletivo de artistas internacional e fluido, uma venerável associação de artes local portuguesa e um instituto cultural chinês afiliado ao Estado. Esta coligação improvável é um estudo de caso de um novo e dinâmico modelo de colaboração cultural do século XXI.
O motor criativo do projeto é o coletivo Art Spectrum. Uma busca por uma entidade formal revela pouco, mas a imprensa mexicana refere-se consistentemente ao grupo como um colectivo — um coletivo. Esta distinção é crucial. Na vibrante cena artística da Cidade do México, os coletivos geridos por artistas, como o famoso Taller de Gráfica Popular, têm uma longa história como alternativas ágeis, experimentais e muitas vezes políticas às instituições tradicionais. A natureza amorfa e baseada em projetos da Art Spectrum é uma vantagem estratégica, permitindo ao grupo reunir talento internacional em torno de uma única ideia e levá-la além-fronteiras com uma flexibilidade que os grandes museus podem não ter.
A fornecer a base local essencial em Portugal está a AveiroArte, o Círculo Experimental de Artistas Plásticos de Aveiro. Com uma história com mais de meio século, a AveiroArte é uma das associações culturais mais respeitadas da região, conhecida pelo seu compromisso com a promoção da arte experimental e contemporânea. O seu envolvimento ancora o projeto internacional na comunidade local, fornecendo-lhe legitimidade institucional e uma ligação ao mundo da arte português.
O parceiro final e mais fascinante é o próprio palco: o Instituto Confúcio na Universidade de Aveiro (IC-UA). Inaugurado em 2015, a missão oficial do instituto é apoiar e promover o ensino da língua e cultura chinesas em Portugal. Globalmente, os Institutos Confúcio são frequentemente vistos através de uma lente geopolítica, considerados instrumentos do “soft power” chinês e por vezes criticados por promoverem uma visão higienizada da China, evitando temas controversos.
Este contexto torna a decisão de acolher a exposição ‘Tzompantli’ um ato notável e paradoxal. Temos aqui um organismo afiliado ao Estado chinês a fornecer a plataforma para uma exposição centrada num tema asteca visceral, com conteúdo que explora o sacrifício ritual, a conquista colonial e a guerra contemporânea — o oposto exato de conteúdo seguro e sancionado pelo Estado.
Este paradoxo, no entanto, não é uma contradição com a missão do instituto, mas indiscutivelmente a sua execução mais sofisticada. Ao acolher uma exposição desafiadora e não-chinesa, o IC-UA vai além do papel de mero exportador cultural para o papel mais complexo e matizado de facilitador cultural global.
Esta escolha estratégica contraria subtilmente as críticas comuns dirigidas aos Institutos Confúcio, projetando uma imagem de abertura, curiosidade intelectual e cosmopolitismo. É uma forma de “meta-soft power” — construir influência não através da promoção direta da sua própria cultura, mas tornando-se um centro indispensável para o diálogo cultural global. Neste paradoxo estranho e potente do Dragão e do Crânio, o instituto aumenta o seu próprio prestígio ao tornar-se um palco necessário para a arte mundial.
Conclusão
Uma obra de arte nunca é apenas ela mesma; está sempre em diálogo com o que a rodeia. O percurso da exposição ‘Tzompantli’ da Cidade do México para Aveiro não é apenas uma mudança de local, mas um ato profundo de recontextualização que altera inevitavelmente o significado das próprias obras.
Na Cidade do México, a exposição foi em grande parte um diálogo interno. Para uma audiência mexicana, confrontar o altar de crânios — mesmo na sua forma contemporânea e artística — é um diálogo com o seu próprio património nacional, uma negociação com os fantasmas da sua própria história. Mas em Aveiro, Portugal, a conversa muda completamente.
Quando uma pintura como ‘Herencia de una conquista’ de Olinka Domínguez é exibida num antigo império colonial, o seu significado multiplica-se. Já não é apenas uma reflexão sobre a história do México, mas um espelho erguido à Europa. O crânio deixa de ser apenas um símbolo mesoamericano e torna-se um emblema partilhado das dinâmicas de poder históricas que moldaram o mundo moderno.
Da mesma forma, a presença de uma artista ucraniana como Ellaya Yefymova, cuja obra é informada pelo trauma da guerra, ressoa com uma urgência particular num continente europeu que ainda lida com o conflito na sua terra natal. O que poderia ter sido recebido como uma tragédia distante no México torna-se uma realidade continental imediata em Portugal. Os seus crânios nus já não são apenas símbolos; são futuros potenciais. A sua obra garante que este tzompantli moderno não seja apenas um altar para reflexão filosófica, mas um memorial à criação contínua e desnecessária de crânios no coração da Europa.
A imagem final é poderosa. Um antigo símbolo mesoamericano de morte e poder, reinterpretado por uma coorte global de artistas cuja consciência é uma refugiada ucraniana, recebe um palco de um instituto cultural chinês no coração histórico de Portugal. Neste cenário improvável, o crânio transcende as suas origens específicas. Torna-se um ícone partilhado de uma condição humana complexa, interligada e muitas vezes conturbada. É um testemunho do poder estranho, imprevisível e, em última análise, esperançoso da arte de construir pontes de significado através dos mais profundos fossos culturais e históricos, lembrando a uma audiência europeia confortável que as questões fundamentais da vida e da morte nos pertencem a todos.
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